Rota das tascas - parte I

Anteontem à noite, enquanto ouvia The initials BB, La Javanaise e Je t'aime...moi non plus do Serge Gainsbourg, li a Time Out do Porto de Outubro que tem como tema de capa "Tascas - As 20 melhores da cidade".
Fiquei com água na boca ao ver a foto da sandes de pernil da Casa Guedes, e, ddesde então, não me sai da cabeça o ritmo das "iniciais BB".
Entretanto, combinei com o Ricardo que hoje íamos almoçar à Casa Guedes, porque eu tinha de provar aquela sandes...mas, hoje, antes de sair de casa, reparei que, no facebook, o estado do Ricardo estava definido como (e passo a citar):
"...a preparar-me para fazer a rota das tascas...vou começar pela sande de pernil e depois quiçá um bolinho de bacalhau ou umas pataniscas..."

Percebi que o almoço se ia prolongar, descalcei as sóbrias Asics e calcei as minhas muy estimadas Merrel, pelo sim pelo não.
E em boa hora o fiz!
Fui buscar o Ricardo a casa e subimos à Praça da República, para depois entrarmos numa série de curvas e contra-curvas e cruzarmos a Sá da Bandeira até ao início da Rua da Alegria. Estacionámos no parque dos Poveiros, e bem, por duas razões: a 1ª, porque tem via verde; a 2ª, porque a Casa Guedes fica no nº 130, da dita praça.
Bom, saímos do carro, já depois de decidirmos que levaríamos connosco as carteiras, os telemóveis, a revista e uma caneta.
Andámos uns metros, após a saída do parque, e deparámo-nos com o cálice sagrado:




O "Snack-Bar Guedes", onde são servidos almoços, lanches e jantares tem um reclame cor de rosa, que apenas nos faz antever "o café das pessoas que vivem na casa por cima, e do senhor que aqui terá vivido até ser posto num lar pela família".
...mas, a par da "The Initials BB", as palavras da Time Out ecoavam-me na cabeça: "Segundo uma receita brasileira, o pernil é servido dentro de um pão de mistura semi-aquecido..."
Entrámos e sentámo-nos ao balcão, com a plena consciência que nos olhavam de lado, por não sermos minimamente parecidos com as pessoas que vivem na casa por cima, nem com o senhor que ali tinha vivido até ser posto num lar pela família.
O dono da casa veio ter connosco e o Ricardo, delicadamente, perguntou se ainda nos servia...assim que o acabou de dizer, e sem eu ter percebido o que ele tinha perguntado, disparei: "Dois finos e duas sandes de pernil, se faz favor".
O senhor trouxe-nos os dois finos e balbuciou qualquer coisa para outro homem que estava na parte de dentro do balcão.


Brindámos, nem sei a quê, mas devia fazer sentido na altura. Enquanto bebíamos os primeiros tragos, o segundo senhor (pelos vistos são os dois irmãos: os irmãos Correia, e não Guedes) trouxe uma assadeira de alumínio bem funda, onde o pernil "molhava os pés" num molho escuro. Virou o pernil, para cortar a parte que tinha estado de molho, e, à medida que cortava fatias, pousava-as novamente no fundo da assadeira. Entretanto, a mulher de um deles (ou era a dona Maria Albertina, ou a dona Maria Augusta) trouxe dois pães de mistura cortados a meio, quase até ao fim, para ficar aquela parte por onde nos vai dar jeito segurar para não cair molho.
Distraímo-nos a conversar do itinerário, uma vez que, à excepção da Casa Guedes, não tínhamos nada programado...o segundo senhor pousou-nos dois pires à frente.


Não sei se a foto faz jus. Constato não estar tão apetitosa como a da Time Out, mas uma coisa posso assegurar: eram sábias as palavras escritas na revista, e bendita a hora que as li, e bendita a hora que conheci o Ricardinho quando tínhamos dois anos, e...enquanto comíamos as nossas deliciosas sandes, parei para dar mais um trago na cerveja, voltei-me para o Ricardo e disse-lhe que, por muito bons que fossem os petiscos das tascas seguintes, nada chegaria ao nível daquela sandes. O Ricardo concordou. Voltei à minha sandes e olhei-a mais uma vez antes de a atacar novamente.
O Ricardo acabou a dele e, como quem não quer a coisa (quem não o conhecer que o compre), abriu a revista, e o segundo senhor espreitou, ao que o Ricardo lhe disse prontamente: "Pois é, a sua casa está aqui".
Bom, o segundo senhor pediu para ver, e levou a revista ao senhor, que a mostrou a outro com quem conversava (talvez o senhor que ali tinha morado até ser posto num lar pela família).
- Ó Ricardo, para que é que fizeste isso?
Depois, enquanto acabávamos as cervejas, o senhor veio ter connosco e, muito sorridente, devolveu-nos a revista e agradeceu lá termos ido. Disse que a casa já tinha saído noutra revista em Julho, mas que, na sua maioria, as pessoas que lá iam parar eram levadas por amigos. Falou-nos ainda do salpicão, dos "queijos e laminados", do vinho verde, deu-nos dois cartões da casa e convidou-nos para o fim de ano que estavam a organizar juntamente com outros amigos....
Saímos, e enquanto escrevia uns rabiscos na minha Time Out, discutimos sobre onde ir a seguir. O Ricardo falou do Porto Ginjinha, e eu perguntei-lhe se era esse o lugar do caldo verde.
- Não, o caldo verde é no Astro - disse o Ricardo
- ...então vamos ao Astro!
- Não, o Astro é em Paranhos.
- Então vamos lá ao Porto Ginjinha. Sabes onde é?
- Não. Sei que é na Batalha.
- Vamos procurar.
Descemos dos Poveiros para a Batalha por uma rua pedonal, cheia de lojas de chineses às cores e bandos de adolescentes, em que as raparigas ostentam o que têm e o que não têm com city jeans, tops bem apertados, casacos brilhantes e mostram-se, falando alto, com o sotaque bem carregado.
- Estas coisas deprimem-me - disse eu ao Ricardo.
- Esta realidade?
- Sim. É estranho, mas desde pequeno que não gosto...é isto e drogarias, daquelas cheias de pó, com grades para não serem assaltadas, e que têm na montra o ferro a vapor ao lado dum baralho de cartas e um leque, e os preços estão escritos à mão, com uma caneta de feltro em cartolinas cortadas aos quadrados.
Chegámos à praça da Batalha, e dirigimo-nos ao Teatro Nacional de São João.
Perguntei ao Ricardo se sabia, ao menos, se íamos na direção certa, ao que ele me respondeu que não.
- Então liga ao Alexandre, que ele sabe de certeza.
O Ricardo pegou no telemóvel e preparava-se para ligar, quando, na rua à direita do teatro, nos apareceram dois toldos, e o segundo dizia:


Entrámos e sentámo-nos.


"A Ginjinha que se vende nesta casa é a autêntica das Portas de Santo Antão (em Lisboa)", está escrito por trás de velhos cachecóis do FCP.
O senhor José Nobre saiu de trás do balcão e veio-nos perguntar o que queríamos, ao que o Ricardo respondeu: "dois finos e duas bifanas".



Meio cambaleante, entra um homem com bigode na casa dos 40, de calças de ganga e casaco de couro preto e vê o Ricardo a tirar uma foto com o meu telemóvel.
- Boa tarde, meus senhores...a todos - remata, olhando para nós, apercebendo-se que não morávamos ali, não éramos o senhor que foi posto num lar, nem éramos fadistas ou actores de alguma peça que estivesse em cena no TNSJ.
- Boa tarde - respondemos
Olhou para o telemóvel.
- Esse qual é? - pergunta ele - Já tive um desses. Na altura veio ter comigo e perguntou quanto é que eu dava por ele, e eu disse-lhe que tinha 15 euros. E ele vendeu-mo. Depois disse que eram mais 3 euros, e eu disse-lhe: "não tenho; queres queres, não queres não queres", e fiquei com ele, mas já não o tenho. Esse qual é?
- Este é o antigo - disse-lhe eu.
O senhor José Nobre, com dois finos e duas bifanas na mão, "enxutou-o gentilmente" de dentro do estabelecimento e perguntou-nos se estava tudo bem connosco, ao que respondemos que sim, "sem problema".


Voltámos a brindar e atirámo-nos às bifanas. São boas, mas não se comparam com as da "Conga".
- É menos picante, mas é boa - disse o Ricardo entre dentadas.
Entretanto, outro homem que lá estava dentro vê entrar uma miúda com um cão que acelera na direção dele.
- Boa tarde, boa tarde, boa tarde, boa tarde...já te disse boa tarde em francês, que mais queres? - enquanto se desviava do cão
A dona do cão riu-se e puxou-o lá para fora, onde se portava bem melhor que o homem meio cambaleante que tinha comprado um telemóvel igual ao meu por 15 euros (isto porque arranjou um desconto de 3 euros, senão pagava o preço de tabela).
O senhor José Nobre viu-nos com a revista, e trouxe-nos a dele e o livro, que estavam ao alto, encostados a um vaso, no fim do balcão. Conheci o livro.
"As Tascas do Porto - Estórias e memórias servidas à mesa da cidade".
Recebi-o há dois ou três anos, pelo Natal.
Abri o livro, e, milagrosamente, ou não (não estivessem as páginas viciadas), abri-o na página certa: Porto Ginjinha e a Adega do Quim.
-  A seguir vamos à Adega do Quim - disse o Ricardo.
- Não. Hoje é só Time Out. A partir daqui, passamos a trazer o livro, que ele até está feito por zonas.
Brindámos.
Levantei-me e pedi ao senhor José Nobre que nos trouxesse dois Eduardinos, e ele esboçou um sorriso, enquanto pegava numa garrafa que já encheu e esvaziou tantas vezes quantas uma borboleta na Austrália bate as asas.
Veio à mesa com a garrafa numa mão e dois copos pequenos. Pousou os copos e atestou-os.


Quando os começámos a beber percebemos o que ali estávamos a fazer.
Levantámo-nos para pagar a conta, coloquei a revista e o livro ao alto, junto ao vaso, e despedimo-nos do senhor.
Assim que saímos comentámos o sabor do licor e a simpatia do senhor José Nobre. Foi, sem dúvida, o lugar onde melhor fomos recebidos.
De seguida o Ricardo pergunta: "E agora, onde vamos?"
- Vamos áquele sítio do caldo verde.
- Ó pá, o caldo verde é em Paranhos.
- E não haverá nenhum por aqui?....- silêncio - Pronto deixa lá.
- Vamos ao Leandro, aos Lóios, comer bolinhos de bacalhau.
- Já lá foste?
- Já.
- E são bons?
- Não comi. Não tinham, na altura.
E lá fomos nós ao Leandro.Descemos pelas mesmas ruas por onde andámos quando comprei as pistolas para o fim de ano. Passámos em frente à estação de São Bento, vimos o Gare ao longe, "atravessámos" os Aliados e passámos pela minha loja de estimação de pequenino: daniel barbosa, onde eu admirava as bengalas e os jogos de mesa feitos em madeira e marfim.
- Vamos ao tenda? - perguntei ao Ricardo
Não respondeu..não precisava. Eram cinco da tarde e ainda não acabáramos de almoçar.
Seguimos para a rua de Trás, e entrámos no nº 12.


Na foto, o senhor António Leandro e a dona Alice trabalham ao ritmo que a idade permite. O Ricardo encetou a conversa, desta vez.
- Traga dois finos e dois bolinhos de bacalhau.
- Não temos pastéis...ó Alice, não temos pastéis, pois não?
- Não. Só temos rissóis. Os pastéis ainda não chegaram.
Não chegaram? Mas que treta é esta? Então a casa é conhecida pelos bolinhos de bacalhau e eles ainda não chegaram? O que é que a casa tem de especial? O óleo para fritar os pastéis?
O Ricardo e o senhor Leandro conversaram algo que não percebi, porque já me tinha sentado na mesa.
O Ricardo senta-se também.
- Que pediste?
- Dois rissóis de marisco e dois de carne.
Espero que o óleo seja mesmo milagroso.
Perguntei ao senhor Leandro onde era a casa de banho, e ele apontou-me uma porta mínima completamente imperceptível, por estar meio metro abaixo do nível do chão. Lá desci as escadas bem disfarçadas e entrei na casa de banho.
The Initials BB saíu-me momentaneamente da cabeça, e pensei no ano de 1996...Aquela noite que antecedeu o Porto ganhar na Luz por 2-1, em que o Jardel matou no peito uma bola a que o Jorge Soares não chegou com a cabeça...não, não foi por isso que a noite se tornou inesquecível.
Nessa noite, o Batis combinou comigo, com o Krueger, o Bodé e o Coelho irmos ao cinema, ao Arrábida e, depois ao mítico Rock's...o Batis, com 15 ou 16 anos, foi proibido de ir pelo pai, que lhe disse que tinha de escolher: "ou vais sair, ou vais ao jogo"...e ele foi ao jogo.
E nessa noite (tentando não fugir muito ao assunto), o filme que nós fomos ver antes do DJ Banzé, da Madam Friction e do Jesus del Campo no Rock's, foi o Trainspotting...e há uma passagem em que o nosso querido e ajuizado Rents diz que a heroína provoca prisão de ventre, e enquanto o explica, começa a dobrar-se sobre a barriga (com as suas roupas bem justas):
- I'm no longer constipated!
Nessa altura, sonha com uma casa de banho com torneiras brilhantes de ouro, mármore branco, um assento de ébano, o autoclismo cheio com Chanel no.5 e garinas a limpar-lhe o cu, mas é tal o desespero que acaba dizendo que qualquer coisa lhe serve, e, quando a porta que diz toilets se fecha por trás dele, aparecem umas palavras extra, que, no seu conjunto, dizem


...e pronto, foram estas as palavras que me vieram à cabeça quando entrei na casa de banho...mas nos Lóios, não na Escócia.
Quando voltei perguntei ao senhor Leandro que mais tinha.
- Sardinhas em escabeche, estamos a fazer tripas, rissóis de marisco, de carne, de leitão....
- De leitão? Traga dois!
Dito e feito. O homem trouxe três.
Comemos um e meio cada um, que fomos empurrando com a cerveja.


"Muito bons", dizíamos nós, e por acaso até são.
"Nunca tinha comido um rissol de leitão", disse-lhe eu...sei lá se tinha se não. O mais provável é que até tivesse, mas agrada-me assim.
- Boa tarde! - entra um homem com trinta e muitos - É um maduro tinto.
- Que chatice, Ricardo...a música não me sai da cabeça.
Entra outro homem, mas este muito parecido com o fominhas da Marechal, só que sem o cabelo loiro. De resto era igual. Trazia um casaco azul bébé sujo, ou cinzento, que lhe dava muita pinta com o cabelo comprido liso, uma calças largas (que me lembram a palavra "pantalones", não sei porquê) e uns sapatinhos que teriam sido engraxados há dois dias.
Bom, mas vamos ao que interessa. O senhor Leandro trouxe-nos quatro rissóis de camarão. Nada mais nada menos que o dobro do que o Ricardinho pedira.
- São bons! Isto é feito com salsa ou coentros?
O senhor Leandro hesita, e a dona Alice diz de trás do balcão.
- Com salsa.
- COM SALSA! - sobrepõe-se o senhor Leandro...claro, senhor Leandro, nunca duvidámos dos seus dotes na cozinha. Sei bem que por trás da fachada da sua mulher estar junto à frigideira, é o senhor que os faz (tirando os bolinhos de bacalhau, que vêm de um lado qualquer especial) e dá as indicações e bota um olho ao fogão.
- É salsa, repete a dona Alice...aqui em cima não se usa muito coentros. Lá em baixo é que eles têm muitas ervas aromáticas. Aqui é salsa.
- Pois! - termina o senhor Leandro, farto de saber isso
Entretanto entra um rastafari novo, com melhor aspecto que toda a gente que víramos até aí.
O Ricardo diz que deve ser "o tipo que trabalha na papelaria ao lado para fazer uns trocos, e vai ali de vez em quando comer qualquer coisa para matar a larica"
Ele pediu, com efeito, qualquer coisa para comer.
O senhor Leandro traz-nos quatro rissóis de carne, para fazer par com os de camarão, e constata que deixámos dois de marisco.
- Só comem o que quiserem.
- Claro - diz a dona Alice - Só comem o que quiserem.
Boa, pensámos nós com os nossos botões...só comemos o que quisermos.
Então, toca a trazer mais dois finos, para matar estes dois rissóis de carne.
O rapaz da papelaria e o fominhas dos Lóios conversavam uma conversa que passo a transcrever:
Rapaz da papelaria - Foi você que matou o Gandhi.
Fominhas dos Lóios - O Gandim é que matou os portugueses das colónias. Eu sou o Che Guevara. Matei um bolivano, porque sou adergantino. Eu estive nos campos de concentração do Gandim.
RP - Quer me dar o seu casaco?
FL - O casaco foi o Pinto da Costa que me deu. Agora deixou a cabrita e anda com uma loira.
Bom, comemos os rissóis de carne, pagámos a conta mais alta da tarde, e saímos.
Ainda demos um salto à Casa Costa (junto à Cadeia da Relação) ao Rei dos Galos de Amarante e à Adega Correia (Cordoaria), mas só serviam almoços ou jantares e, para ser sincero, o almoço já se prolongava há umas horas. Pedimos dois finos na Adega Correia e voltámos pela Cordoaria fora até chegarmos à Flor do Parque (ao lado do nosso maduro tinto fresquinho, dois dias antes de irmos para Formentera) mas já nem nos apetecia a nata de sobremesa.


Passámos pela antiga Diese, onde o meu avô me dava aqueles gelados cremosos maravilhosos que saíam da máquina, barras de nougat, e embalagens de queijo (daquelas que vêm, muitas vezes, nos pires das entradas dos restaurantes, juntamente com o pacote de manteiga e o de pasta de sardinha).
Acabámos no Piolho, onde o Ricardo me tentou, infrutiferamente, tirar as Iniciais BB da cabeça, passando Them Crooked Vultures e Sebastien Tellier.


...o parque foi quase tão caro como as sandes e os dois finos...e sim, as sandes da Casa Guedes foram o melhor petisco.

2 comentários:

  1. com o devido respeito por Júlio Dinis, à custa das tascas, vou reescrever "Uma família inglesa"

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